quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Vivível

Desde que eu comecei a dar pitaco em assuntos de literatura, eu tinha formada a opinião de que eu odiava Clarice Lispector. E sempre me orgulhei disso. Meu primeiro contato com ela foi num livro que meu pai - o mesmo que me levou pra ver um filme iraniano quando eu tinha 8 anos e O Escorpião de Jade quando eu tinha 9 - me deu quando eu era pequena, A mulher que matou os peixes. Eu senti naquele livro que me fora presenteado uma aura profunda demais, meio problemática. Já não gostei. E aí, com o passar do tempo, com as informações sobre ela que eu ia pescando, eu ia montando um quebra cabeça superficial, daquela mulher misteriosa que fazia uma literatura completamente abstrata e espiritual.
Não sou de todo injusta; resolvi dar-lhe uma chance ao achar em casa um exemplar de Uma aprendizagem. Fatalmente, abandonei o romance nas suas primeiras páginas, quase praguejando: "Isso é abstração demais pra mim."
Clarice tinha ficado jogada em algum canto da minha memória, até que, ano passado, quando comecei a ter aula de literatura brasileira, ela ressurgiu das cinzas como uma personagem fundamental no romance de 30. Minha aversão voltou na forma de zombaria com relação à denominação "prosa intimista" dada à sua literatura. Mas, já dizem por aí, quem muito desdenha quer comprar, e então essa minha aversão foi dando assunto demais, eu me pegava conversando sobre Clarice Lispector com várias pessoas. E foi numa dessas conversas, com meu pai, que compreendi que eu não odiava Clarice. É bem verdade que, com tudo que eu entendia sobre sua literatura, achava de fato que era abstração demais para mim. No entanto, percebi que o meu verdadeiro ódio é por asseclas - femininas, em sua esmagadora maioria - que se entregam à Clarice de corpo e alma, se referindo à escritora por seu primeiro nome em um tom de cumplicidade extrema, como se a existência dessa pessoa significasse alguma coisa para ela. Asseclas estas que, também em grande maioria, não entendem nada de literatura, e que, no entando, enchem a boca para citar alguma frase clichê de Clarice Lispector, que elas provavelmente procuraram no wikiquote, já que estavam ocupadas demais para ler de fato algum livro.
Foi aí que decidi dar uma chance de fato para ela. Foi uma distensão lenta, gradual e segura. Comecei a ler sobre sua técnica de fluxo de consciência, ler uma coisa ou outra sobre sua vida... Passei daí a alguns contos. Gostei de alguns mais, de outros menos, mas não adorei nenhum. Aí então tomei coragem e li A paixão segundo G.H.. Foi a coisa mais abstrata que eu li em toda a minha vida. Era praticamente imaterial, por vezes inconsistente. Difícil, sem dúvida.
Quanto mais eu lia, mais crescia não meu interesse por ler mais de sua literatura, e sim, o de saber mais sobre quem estava por trás daquilo tudo. Devia haver algum motivo para aquela abstração toda. Nenhum reles mortal que faz três refeições por dia, dorme durante 8h e assiste fantástico no domingo teria de onde tirar aquilo tudo. Aí então decidi ler a nova biografia da escritora, escrita por Benjamin Moser.
Percorri toda a minha trajetória clariceana apenas para dizer que foi funamental ler esta biografia. Lembro-me de uma conversa que eu tive com um amigo, antes de comprar o livro, dizendo que "Não sou fã da literatura da Clarice Lispector, mas ela me intriga muito. Não quero comprar um livro dela, e sim sua biografia" ao que ele me respondeu "Ela era só uma mulher desocupada com um filho esquizofrênico, o que interessa mesmo é a literatura dela". E é aí que mora o engano. Sua literatura intimista, hermética, abstrata, espiritual, seja lá qual for o nome com o qual desejem orná-la, é fruto de uma personalidade única, marcada por experiências muito fortes. Me sinto tragicamente clichê em dizer todas essas coisas, mas são os fatos. Depois de lida a biografia, me sinto mais apta em destrinchar sua literatura.
A última coisa que eu quero na minha vida - empatado com ser professora de portugês em escola - é me tornar uma dessas claricettes acéfalas. No entando, me vejo obrigada a dizer que me identifiquei com muitas descrições de fatos de sua vida presentes no livro. Não sei se isso aconteceu pelo fato de minha casa estar sendo tomada por baratas ultimamente (para quem não sabe, aparentemente, Clarice Lispector tem uma certa fixação pelo inseto, que aparece como coadjuvante em diversos escritos, e é o protagonista do romance A paixão segundo G.H. e do conto A quinta história) ou se foi pela fenomenal declaração de Affonso Romano de Sant'Anna, de que, depois de um súbito desaparecimento de Clarice de um seminário de epistemologia, ele ligou para ela para perguntar se estava tudo bem, ao que ela respondeu "Aquela discussão toda me deu tanta fome que eu vim para casa e comi um frango inteiro."
É difícil fugir de clichês quando se fala de alguém tão marcante quanto Clarice Lispector. Mas, como ela mesma disse "Estou caindo no discurso? que me perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então descansar."

4 comentários:

  1. Sempre gostei dos livros da Clarice, e tinha certeza de que a biografia dela seria bastante interessante.

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  2. Nunca gostei da Clarice, contudo não vejo tamanha abstração, apenas vejo alguém que curte descrever as viajadas que damos em ônibus e outros transportes públicos. E, sei lá, o universo dela não é compatível com o dos homens que curtem Charles Bronson, só isso.

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  3. Adorei o texto, Dora. Já leu o conto "A menor mulher do mundo"? (Hoje gosto muito de Clarice, mas minha trajetória para com sua obra foi um tanto o quanto conturbada. Fico feliz por não ser a única em meio à tanta unanimidade)

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